16.8.10

Faz Parte.

Vamos fingir que eu sou tu. Não é por nada, mesmo nada de muito grave, nada com que tenhas de te preocupar, pelo menos não em nenhum perturbador aspecto clínico ou sequer judicial. É só porque hoje queria ficar aqui a ver-te no meu pensamento a saber cada gesto e olhar teus, cada lugar por onde andas, cada desejo que te nasce no sangue que te corre como louco para o coração. Adorava saber esse mistério do lugar onde nascem os desejos, adorava sabê-lo em ti. E porque hoje queria ver-te e olhar-te no meu pensamento, tão fundo que o meu pensamento fosse o teu, hoje queria fingir que eu, enquanto te escrevo ou me escrevo, sou tu.
Faço as malas. É dia de viagem. São quilómetros de estrada de alcatrão, sempre em frente, uma viagem longa que quase sempre parece interminável, e um caminho por dentro que tem atalhos e labirintos meus por onde preciso e quero perder-me até me saber desmontar em todas as peças que me fazem quem sou, que, juntas, inteiras, partidas, desfeitas (sei lá em que estado estão) me deixam construída no que sou eu. E hoje, que finjo ser tu, a minha curiosidade e urgência em conhecer, desmontar, desconstruir, em (pelo poder real e imenso do pensamento) agarrar e sentir na minha pele cada uma dessas peças é tão maior.
Já fui muito feliz e muito infeliz nesta viagem. Já me ri e chorei, tanto, nesta viagem, (Já te vi, a ti, rir e chorar.) Já fui mais e já fui menos, infinitamente. Mas é assim a vida, afinal, como esta viagem que se repete. O que se ganha e o que se perde pode ser tão sublime ou tão aterradoramente definitivo e, no entanto, tudo faz parte do caminho. A viagem é a mesma, sempre.
Chego. Os rumos paralelos convergem numa rampa íngreme que é (não sei como é que tenho ainda esta sensação...) um bocadinho mais longa do que julgo, pela ansiedade de chegar. A estrada passa a ser de terra e eu conheço o cheiro daquele chão, o fundo daquele céu e o abraço que me espera, (O abraço que te espera.)
Chego e sei que aqui, talvez ainda, talvez ainda mais outra vez, estar partida em pedaços não vai doer tanto como dói noutros lados. Estar partida em pedaços (talvez ainda, talvez ainda mais desta vez) é como é preciso chegar, aqui, para começar devagarinho a reconstruir, peça por peça, a espécie única de que é feito cada coração.
Queria que o meu tivesse a forma de um mundo, mesmo partido e bem o mal colado e com bocadinhos que faltam porque me foram arrancados ou porque os arranquei eu e não os voltei ou não os quis voltar a encontrar. Queria que o meu coração tivesse a forma de um mundo e que tu, que queres tão avidamente o mundo inteiro, o quisesses inteiro, assim, para ti.
Entro e pouso a minha vida neste chão que, afinal, fica mais perto do céu do que toda a terra à sua volta. Largo lá fora os medos, como sempre fiz. Aqui dentro é onde sei que posso desarmar-me e desarmar-nos pode ser bom. Desarmar a solidão, principalmente, quase sempre encurralada nos seus segredos, nas suas teimosias, nas suas muralhas de autodefesa, é a única forma de chegar ao essencial e, no essencial, ali onde começa a espiral que nos espalha por nós e pelos outros e pelos dias e pela vida e pelo mundo, há um lugar onde somos sozinhos, muito, muito sozinhos que é também, extraordinariamente, o único lugar onde é possível que alguém nos faça, de verdade, companhia.
É bom chegar a esse lugar. É preciso. Custa talvez o caminho, mais é sereno fazê-lo ali. No silêncio do pátio de pedra, entre as sombras da videira que deixam entrar só uns bocadinhos de sol como se lhe fizessem o enorme favor de lhe permitir espreitar lá para dentro, numa daquelas cadeiras de lona onde o peso dos nossos corpos foi deixando, ao longo dos anos, uma forma nossa, descontamino aquele bocadinho de mim que é de onde vem tudo o que sou, tudo o que poderei ser, onde guardarei tudo o que dei de querer e saber amar bem.
Não é fácil descontaminarmo-nos do ruído dos dias e das noites perdidas, atormentadoras e violentas, das palavras vãs, levianas e demasiado fáceis que nos são ditas como quem não soubesse que as palavras podem matar, dos gestos que fazem feridas onde não se vê, com as mesmas mão que servem para as curar, e do cansaço infinito que a vida nos crava dentro e fundo depois de mais uma e outra e outra luta em que quase nunca há vendedores nem vencidos.
Não é fácil esvaziamo-nos de tanto, tanto, tanto nada que nos surge pela frente em forma de tudo, de gente diferente que quer ser igual e gente igual que quer ser diferente, de risos e lágrimas que se exibem como se fossem troféus de guerra, de planos, de histórias, das mais extraordinárias futilidades elevadas a vidas de fortes emoções. Descontamino-me porque preciso respirar, porque preciso saber, no meio de tudo isto que sufoca e nos esconde, quem é que eu sou, o que é que eu sino e o que é que afinal vale a pena. E, como sou tu, hoje, mesmo que seja a fingir, o teu olhar lá dentro olha-me de ti e, aqui dentro, se olhares bem, sou só eu quem te olha outra vez.
(...)
Não importa perdermo-nos, faz parte. Há que acontecer tantas vezes mais quanto mais quisermos fazer nosso o caminho. O que importa é dizer-te e saberes, porque hoje sou tu e por isso vais saber melhor, que aqui, onde começo, onde sou, só, onde eu quero que o meu coração seja um mundo, tão partido como estiver, tão bem ou mal colado como poder ser, há sempre um chão, um lugar que, estejas onde estiveres, é teu.

Mafalda Veiga, in Visão

2 comentários:

*Mary disse...

Eh pah! Eu recebi a revista em casa, para tentarem que eu me tornasse assinante...
E tive QUASE uma hora para passar o texto a computador. Para tu chegares aqui, e em 2 minutos por no teu... ha que ter lata Joana Isabel! =P

Eu sabia que tambem ias gostar =)

Jo disse...

"Queria que o meu coração tivesse a forma de um mundo e que tu, que queres tão avidamente o mundo inteiro, o quisesses inteiro, assim, para ti."



adoro o texto :)